O discurso
emitido na cura tem como suporte uma “exigência pulsional” (Triebanspruch) que o contamina com uma
significação inconsciente. Um poema, por sua vez, tem como suporte uma exigência poética que
seria uma refração, no plano da obra, de um movimento criativo inconsciente que
o leitor é convidado a identificar e acompanhar em todas as suas
conseqüências.
A presença
desta exigência pode ser melhor compreendida a partir de um exemplo de Jean
Laplanche quando descreve o momento de gênese de um dos seus textos: “jogamos palavras
sobre o papel, como por acaso, levados pela assonância, seduzidos pelo efeito produzido ou a produzir (...). Aí estão inscritas, de agora em diante, não
completamente sem história, nem sem intenção deliberada, mas num certo lugar
intermediário, de onde exigem fazer sentido.
Mas, desde então, não se tem mais sossego. Já estão investidos, pela
exigência do tema, pontos de estimulação de onde irradiam a inquietude, senão a
angústia: verdadeiro demoniozinho cuja energia é preciso ligar antes de toda
esperança de fazê-la fluir e disso obter um certo prazer. Eis aí, mais que uma imagem, mais que um
modelo: um desses microtraumatismos renovados que pontuam, que relançam nossa
atividade criativa” .[1]
A exigência
poética, portanto, reflete a exigência pulsional de quem escreve. Antes de se deslocarem para o texto, esses
microtraumatismos, de que fala Laplanche, exigem uma busca de sentido a partir
do inconsciente do autor. Antes de uma
exigência textual, existe uma exigência pulsional a investir certos pontos de
estimulação situados num espaço de transição, significantes já, mais ainda
enigmáticos, a irradiar inquietação, angústia.
E a exigir tradução.
Tradução se
torna aqui o nosso conceito central, se tomarmos como referência o aparelho
psíquico visto como um sistema de estruturas sucessivas no tempo, cada uma delas
formada para traduzir, fornecer significação, a um excedente energético
pulsional, tal como concebido por Freud na Carta 52/112 de sua correspondência
a Fliess.
Antes que
este texto se torne enfadonho, convido para escrevê-lo comigo uma menina que
começou a fazer poemas aos três anos de idade, ditando-os para sua mãe. São de
Mykaela Mota Plotkin os poemas que trago para fruir com vocês.[2]
Mykaela tem a palavra:
A frase serve para
escrever ou ouvir.
A pessoa que está
fazendo essa frase
eu conheço ela.
O nome dela é Mykaela
uma menininha bonita e
carinhosa.
Assim,
bonita e carinhosa, a menina logo se transforma em flor:
As flores dizem o que falam
e o que têm.
Mas o que a flor fala
ninguém quer saber.
Só ela é que quer.
As flores fazem uma
frase
em dez segundos iam
dizendo
aquela palavra que ninguém
escutava.
Que palavra? perguntam a
Mykaela:
Não sei, ninguém escutou.
Já
transformada em flor, a menina agora se confunde com a palavra:
A flor que acontece
é a palavra do mundo.
A flor é a palavra que
Deus fala.
É o sentimento.
Deus fala a palavra
dele.
É diferente da gente.
É muito bonito, é
carinhoso,
é essa poesia que eu
estou fazendo.
Mas a
palavra em flor não pode ser a única dona do mundo. Alguma coisa vem contrariar o seu poder:
As flores tomam conta do mundo
e o coração toma conta
de todas as coisas que
as flores querem fazer.
E as coisas erradas que
as flores fazem,
o coração briga.
Está posto o conflito entre flor
e coração. Entre palavra e sentimento:
Era uma vez uma flor.
Uma flor que disse ao
coração
uma poesia bem bonita,
pra sempre ficar com
ele.
E o coração aceitou.
E ela disse: vai querer?
E ele disse: não.
- Por que não?
- Por besteira.
E aquilo
que o coração aceitou mas não quis, esse enigma não dito, vai tentar se dizer
através da poesia:
A poesia fala as coisas da vida
A poesia fala das coisas
da vida
A pessoa tem o programa
do dia
Quando a pessoa acorda
tem de escovar os
dentes,
depois se alegrar,
viver.
E depois dormir fazendo
uma poesia como essa.
Obrigada, poesia
por você vir para eu
falar.
A poesia é um outro dentro do
poeta que parasita o seu cotidiano,
alimentando-se das coisas simples da vida.
Eis o que faz o poeta:
Escreve o som da tosse
o som dos passarinhos
a zoada de uma rede
a zoada da cortina
quando está fechando
a zoada da árvore
balançando
o som da janela se
fechando e abrindo
a zoada de uma pitanga
caindo.
Se não tiver letra pra
escrever,
inventa.
O
poeta inventa letras, inventa palavras, para com elas inventar um mundo novo a
partir daquele habitado por gente comum, de hábitos prosáicos:
Agora tem gente dormindo,
chorando, morrendo,
casando,
namorando,
rindo, fazendo xixi e
cocô,
tomando banho, tirando a
roupa,
se beijando, se
abraçando,
se amando,
se refrescando, abrindo
o guarda roupa,
lendo, se amando direto
e fazendo poesia.
A poesia quem fez foi
Mykaela.
O mundo
visto pelos olhos da poesia, se algumas vezes desperta os sentimentos amorosos
do poeta, no mais das vezes lhe causa angústia e medo. O olho é uma coisa tão pequena / mas pode ver muito, afirma
Mykaela. Mas é na própria poesia que o
poeta encontra forças para reinventar o mundo:
Passarinho, amo você.
Você é uma vida da
poesia.
Passarinho,
tenho uma palavra pra você:
é a poesia que Deus me
deu.
Essa é a palavra que eu
tenho de dizer.
Se eu não disser
é porque tenho medo do
mundo.
Eu amo você, passarinho.
Eis, enfim,
a palavra que dá medo: amor. E a quem
ama o poeta? Desde o princípio dos
tempos, a quem amam todos os poetas? O
poeta ama a falta. E cobre a falta com o
carinho das palavras:
Te amo muito.
As coisas que eu vivo
é com saudade de você.
As coisas que eu não
vivo
Não tenho saudade.
E outras saudades
fugindo.
Mas tem a fala, tem a
carta
indo pra lá, vindo pra
cá.
É amor de muito.
Muito amor,
amor de muito, amor a muitos, concentrados no amor primordial. É isto o que quer o poeta, desesperadamente:
Eu te amo como tudo na vida.
Amo todo mundo
e também a mim própria.
Você pra quem eu estou
falando
é a melhor pessoa que eu
gosto.
Goste de todos
e também de si própria.
Mande cartas, beijos,
amores para todos,
que você vai ser amada.
Amor, amor, escute isso,
isso importa.
Amor, amor,
só os bebês não escutam,
você precisa escutar.
Eu te amo!
Esse
imperativo amoroso, essa busca incessante do outro pode, às vezes, apenas sublinhar
o sentimento de solidão:
As pessoas não sentem o coração das outras.
As pessoas não sentem a
poesia das outras.
E essa
poesia está num certo mundo, dentro/fora do poeta que se apresenta como seu
tradutor, a expressar a eterna renovação
de um traumatismo originário que experimenta várias formas de simbolização, às
vezes lançando mão de uma linguagem quase em estado bruto :
O mundo faz a palavra que eu tenho de dizer.
Eu dito umas palavras do mundo.
Não posso perder as coisas, tenho de
ganhar.
As estrelas vão caindo na minha
cabeça
e eu não posso ficar com essa
pancada.
As estrelas têm de ficar no céu.
Perder são as estrelas caírem em
mim.
E ganhar, são elas ficarem no céu.
As estrelas são presentes
e o céu é na minha mão.
A poesia
tenta capturar esse estranho objeto de desejo, cujo enigma se anuncia e foge
nas brechas da palavra, nas suas falhas, nas suas faltas:
Admiro tanto, você fala, se alegra,
por isso não diz o que fala.
você tem aquelas palavras
que ninguém sabe.
Admiro tanto,
você fala com palavras.
Mas como, se você não tem palavras?
Você só tem histórias pra falar.
Admira, admira a luminosidade.
Admira porque, se não for isso,
a gente tem de ir correndo pra casa.
E as muitas
tentativas de tradução vão aos poucos apaziguando o poeta, num trabalho de
conciliação com o que lhe causa espanto:
Está certo que vai
acontecer isso:
- nós acontecemos.
E você pode fazer
qualquer coisa.
Eis, enfim,
o resultado do trabalho da poesia. Uma
paz, ao menos provisória, para o espírito do poeta, liberto por um tempo da
obsessão do enigma:
Você pode sair um dia
pra qualquer lugar.
Eu também sairei para
outro lugar.
Quando eu chegar, você
me fala.
Eu pergunto onde é o aí,
eu vou até aí,
danço com você,
faço o que você quiser,
o que eu quero e sei.
E o que
esta poeta sabe agora, esta compreensão provisória do enigma, permite usar uma
linguagem simples, mais própria das crianças, mas ainda carregada da substância
poética que se encarrega de manter a beleza polissêmica:
Mãinha, tu me alegras,
te amo.
Tu sempre me alegraste,
ontem, hoje,
quando eu estava na tua
barriga,
até antes de eu estar na
tua barriga.
Eu estava no país das
sementes.
Neste país tem muitas
sementes nenêns.
Sabia que tu também
ficaste neste país?
Todo mundo ficou neste
país.
Eu nunca vi, mas sei que
tem um homem
que toma conta das
sementes.
Então a semente vai
crescendo,
primeiro um fio de
cabelo, depois outro.
O pé, se coloca uma fita
durex,
passa o tempo e ele
cola.
Depois do bebê pronto,
ele sai pela pipinha ou
pela barriga.
No meu dia só saíram dez
crianças
do país das sementes.
Cada mãe tem um país das
sementes.
Ai mãe, eu queria tanto
ser menina,
e sou!
Eis aí uma resposta provisória
ao enigma permanente. O poeta repousa por um tempo contemplando esta cena que a
poesia construiu em sua frente. Mas a
poesia volta e exige novamente, e sempre. Mikaela reafirma:
A poesia não se cala
como um papel rasgado
como um sapato velho.
A poesia não se cala,
ela fala.
E tantas coisas.
Porque é próprio dos enigmas
esse retorno. O traumatismo das origens
se renova, pois
As flores e os amores
são antigos,
não envelhecem, são para
sempre.
E cabe ao poeta também não
envelhecer, permanecer criança frente aos enigmas do mundo, participar da
brincadeira da criação, pois o papel é o
palco da caneta. E nesse palco encenar cotidianamente o nascimento do
mundo. E nos ensina, finalmente, Mikaela:
Sabia que o mundo é branco?
É como um papel branco.
A gente é que está
escrita nele.
É isto, ao meu ver, que nos
sugere Mikalea: aproveitemos nossa inscrição no mundo para nos dizermos
poeticamente, num reconhecimento mútuo dessa exigência de poesia que pulsa em
cada um de nós.
João
Pessoa, setembro de 1996.
* Texto apresentado no I Encontro de Psicanálise da Criança na Paraíba, em 12.10.96
** Professor do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba
[1]
Laplanche, J. “ Traumatisme,
traduction, Transfert et autres trans(es)”in La révolution copernicienne inachevée., p. 255.
[2]
Poemas extraidos dos livros Casa da
Poesia, edição do autor, Recife, 1992 e O
passo dos que falam, Edições Bagaço, Recife, 1993.
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