sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Meu mestre cearense














Não sei o que fiz pra merecer tanta consideração da parte de Nilto Maciel. Nós nunca nos vimos, nunca trocamos uma palavra que não fosse por e-mail, não tenho deztões da competência que ele tem pra escrever um conto, muito menos um romance louco como Carnavalha. Mesmo assim, o Nilto vive me cobrindo de gentileza. No ano passado, me mandou os dois volumes dos seus Contos Reunidos. Mês passado, sempre pelas mãos do seu cupincha Pedro Salgueiro, me mandou o tal romance desvairado e o seu último livro de contos, Luz vermelha que se azula. Os contos, devorei em uma tarde. O livro demorou mais um pouco: dois dias.
A gentileza dada não se olha os dedos, diz a sabedoria eqüina. Mas mesmo assim procuro um motivo para os desvelos do Nilto Maciel. E encontro um, mesmo que saiba que não é esta sua intenção. Nilto me ensina a escrever. Cada palavra sua, cada frase, é uma lição de competência e propriedade. Seus personagens são de carne, de ossos e de sonhos. Suas paisagens passam a viver em nós, como lugares em que devíamos ter vivido. Com Nilto Maciel, parte-se do plausível para o delírio como quem pisca.
Que Nilto Maciel aceite que o adote como um irmão mais velho e mais sábio. Um irmão que nunca vi, mas que aprendi a amar com o amor que se transfere para quem escreve as palavras que amamos.
Tive muitos professores que me transmitiram o pouco que sei e aos quais sou devidamente grato. Mas tive poucos mestres. Uns três, talvez. Estes me ensinaram a pensar, a sentir, a viver e a deixar as marcas da minha passagem pelo mundo. A estes mestres queridos, vem agora se juntar Nilto Maciel, que me ensina a refinar o trato com as palavras. Que me mostra como se urdem os barbantes da realidade com os fios de seda dos delírios para tecer um texto que comprometa e fascine quem o lê.
Se de agora em diante eu passar a escrever melhor, podem ficar certos de que o mérito é deste meu mestre do Ceará.

domingo, 6 de março de 2011

A tecelagem noturna

Novas considerações sobre o poeta dormindo
(Versão abreviada)

Ronaldo Monte*

O poeta João Cabral de Melo Neto tinha 21 anos quando apresentou ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941, as suas Considerações sobre o poeta dormindo . Ali, tentava falar das relações secretas, suspeitas, entre o sono e a poesia. O sono como fonte do poema. O poeta estava impressionado pela freqüência com que os críticos e poetas da época falavam e se preocupavam com o sonho. Dos estudos contemporâneos de psicologia às seções de jornais e revistas dedicados à “interpretação dos sonhos” as aplicações práticas que se faziam da produção onírica, sem nenhuma humildade, deixavam no completo esquecimento o mistério do sonho, a sua sombra.
O poeta não concordava com a dupla atitude comum aos homens do seu tempo, atitude “de quem come o sonho e de quem é comido pelo sonho”. João Cabral se refere ao sonho como uma obra de arte. Uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. O sonho é uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. Uma coisa que pode ser evocada, que pode ser explorada através da memória. “Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição”. O sonho é uma obra em si, totalmente cumprida. Entretanto, por mais que esta experiência fabulosa que se assiste possa ser evocada, narrada, dificilmente pode ser transmitida. Isto por conta de seu parentesco com a poesia. Mais ainda, em virtude da própria poesia que o sonho traz consigo.
Interessa agora ao poeta isolar o estado de sono do fenômeno do sonho para depois verificar o que o sono tem a ver com o poeta e a poesia. Pois, ao contrário do sonho, o sono é uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada. Uma aventura da qual se volta de mãos vazias. O sono é como um poço em que estamos ao mesmo tempo mergulhados e ausentes. E esta ausência nos emudece. Numa espécie de relação de causa e efeito, o sono não só provocaria o sonho, tendo-o como sua linguagem natural: o sono condiciona o sonho emprestando as dimensões e os ritmos de escafandristas às coisas que no sonho se desenrolam diante de nós. É o sono ainda que molda aquelas distâncias, que nos faz assistir certos acontecimentos contra os quais não podemos agir de nenhum modo, em que somos invariavelmente o preso, o condenado, o perseguido.
João Cabral agora se atreve a uma sutil fenomenologia, procurando estabelecer uma semelhança entre os elementos que compõem o clima do sonho, - um clima de tempestade, como o da poesia -, e a imagem da aparência do homem adormecido. Tanto os acontecimentos do sonho como o homem que dorme estariam profundamente marcados pela presença mesma do sono. Uma presença que não seria apenas a negatividade da vigília, mas marcada pela visão de um território desconhecido, um lugar onde somos estrangeiros e de onde “voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de mar alto, de ‘águas profundas’...”
Território estranho, este, o do sono; mais estranho ainda por se localizar dentro de quem dorme. A atitude do corpo de quem dorme, “nessas poses não raro trágicas (irônicas), nas palavras que se quer balbuciar”, na fisionomia mesma de quem dorme podemos adivinhar “os sinais de uma contemplação, e que é, sob outro aspecto, um sinal de vida”. Quem dorme, digo eu, contempla o chão do sono. Arrisco-me a dizer que este chão é a verdadeira pátria do estrangeiro, desse outro estranho a quem assistimos desde o nosso posto de contemplação. Daí a nostalgia do mar alto, das águas profundas que trazemos de volta ao acordar. Que estranho este que dorme em nós.