Ronaldo Monte
“O escritor não precisa inventar, mas traduzir, porque o único
livro verdadeiro é aquele que existe em cada um de nós. O dever e a tarefa de
um escritor são os de um tradutor.” M. Proust.
Na metade
final de O tempo redescoberto, sétima
parte do romance Em busca do tempo perdido, Proust reflete sobre a essência da obra
de arte, particularmente sobre sua própria obra. É um momento em que o autor
revela todo o seu gênio literário, pois, subvertendo a linearidade do tempo,
nos mostra como deveria ser escrita a obra que estava acabando de escrever.
Quem possui alguma familiaridade
com o Projeto para uma psicologia
científica, esboçado por Freud em 1895, sabe que este movimento retroativo
é característico da constituição do traumatismo psíquico, em que são
necessárias duas cenas separadas no tempo. Uma primeira cena, em que acontece
um atentado sexual, se daria num período em que ainda não existia uma
sexualidade na criança (período que Freud nomeia, curiosamente, de sexual-pré-sexual). Só depois, com a
ocorrência de uma segunda cena, aparentemente anódina, mas com relações
simbólicas com a primeira, o trauma se instalaria efetivamente.
Este movimento a posteriori pode ser considerado a
chave para a compreensão de todo o romance proustiano, como muito bem o ilustra
as quatro experiências tomadas pelo autor para demonstrar o seu processo de
criação: a famosa experiência com a madeleine,
as pedras irregulares do calçamento na entrada da casa dos Guermantes, as
lembranças de um martelo batendo numa roda de trem causadas pelo barulho de uma
colher batendo num prato e o delírio imediato causado pelo contato de um
guardanapo em sua boca.
O modo fortuito e inevitável em
que, segundo o autor, surgiram essas sensações era uma “prova da verdade do
passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois percebemos seu
esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do real recapturado” (P. 130).
Assim, um livro subjetivo seria
composto por esses sinais desconhecidos (sinais em relevo,
dir-se-ia, que minha atenção, explorando o inconsciente, procurava, roçava,
contornava como um mergulhador em suas sondagens), ninguém me poderia, com
regra alguma, facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que não
admite suplentes nem colaboradores.(p. 130).
Está toda
presente aqui a noção proustiana da obra de arte como trabalho de tradução.
Trabalho solitário em que nossos olhos viciados podem vislumbrar a atenção
flutuante do artista roçando os contornos do inconsciente, tal como um
contemporâneo seu já anunciava desde o limiar do século XX.
Damos a Marcel Proust a
prioridade de introduzir a questão da tradução, pois em “O tempo redescoberto”
ele afirma que
se tentasse verificar o que de fato se passa em nós quando
alguma coisa nos causa determinada impressão (...) eu veria que, para exprimir
tais sensações, para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro, um
grande escritor não precisa, no sentido corrente da palavra, inventá-lo, pois
já existe em cada um de nós, e sim, traduzi-lo. O dever e a tarefa do escritor
são as do tradutor. (Proust, 1968: p. 138).
Provavelmente foi esta concepção
do trabalho do escritor como tradutor levou Walter Benjamin a escrever, em 1921, A tarefa do tradutor, texto enigmático em
que nos deparamos com a noção de teor,
aquilo que na tradução é impossível de ser traduzido. Por mais que a tradução
extraia o máximo do que for comunicável no original, nele permanece algo
intocável, sendo, por isso mesmo, o que atrai e orienta o trabalho do
verdadeiro tradutor. Atrevo-me a afirmar que este teor, na obra de Proust, é o
próprio tempo; esse tempo perdido que o autor pretende ter redescoberto.
O modelo tradutivo em Freud
A noção de tradução está presente
desde cedo no texto freudiano, tendo um papel primordial para a compreensão dos
seus primeiros modelos do aparelho psíquico. No início da inesgotável Carta 52,
endereçada a Fliess em 6 de dezembro de 1896, Freud informa que está
trabalhando com a hipótese de que o aparelho psíquico se constitui por um
processo de estratificação em que os traços de memória se submeteriam,
periodicamente, a uma retranscrição, de acordo com novas circunstâncias. Essas
transcrições sucessivas representariam a operação psíquica de épocas sucessivas
da vida, na fronteira das quais necessariamente se efetuaria a tradução do
material psíquico, de acordo com as características dos neurônios que dariam
suporte a estas transcrições. Este
aparelho tradutor baseia-se na tendência à nivelação quantitativa, sendo cada
reescritura necessária para adequar a excita ção
às características da via neuronal que lhe facilitará o trânsito na parte do
trajeto de uma determinada jurisdição.
Ao percorrer um determinado
caminho, uma certa excita ção recebe
uma significação diferente, de acordo com as características de cada trecho do
percurso entre a percepção e a consciência. A cada nova transcrição,
existe a possibilidade de permanecerem sem tradução determinadas partes do
texto da versão anterior, por conta do desprazer que tal tradução geraria. Tais relíquias restariam anacrônicas no
discurso atual de um determinado período, sendo, além do mais, passadas para o
período posterior em sua forma arcaica não traduzida, onde causariam maior
estranheza. Esta sucessão de traduções seria uma tentativa permanente do
aparelho psíquico em se livrar de um excesso de excita ção
gerado pelos traços de percepção (Wahrnehmungszeichen)
que desde a porta de entrada vem exigindo a impossível tarefa de sua tradução.
E o desprazer causado pela ineficiência de cada tradução proposta provocará o
ataque e dissolução desta organização provisória, permanecendo a exigência de
uma reestruturação dos signos, da qual surgirão novos sentidos.
Proust e a psicanálise
Será que Marcel Proust, adepto
das idéias de Bergson, conhecia a teoria desenvolvida pelo seu contemporâneo
Sigmund Freud para nela se inspirar na sua concepção de tradução das impressões
escondidas no íntimo do escritor?
Ainda segundo Carpeaux, Proust
“não chegou às interpretações psicanalíticas”, embora seu estilo acentue, mais
do que esconda, uma confusão intencional, mimetizando a confusão própria dos
sonhos.
“Apenas, os sonhos de Proust não foram realmente sonhados. São
sonhos artificiais (sem sentido pejorativo) sonhos deliberadamente imaginados,
e neste ponto – na transformação imediata do sonho em obra de arte – é Proust
realmente um psicólogo ‘moderníssimo’. Todos os personagens de À La recherche
du temps perdu são projeções da alma do artista Proust que sonha; e, como
sempre acontece no sonho, aparecem entre os desejos e receios personificados os
‘resíduos do dia anterior’, quer dizer, restos memorados do único mundo real
que o pobre doente conhecera nos ‘anos anteriores’. Eis o mundo mundano de
Marcel Proust.” (p. 2416).
Para acentuar mais ainda essa
distância de Proust e a teoria psicanalítica, Carpeaux o separa de Joyce para
aproximá-lo de outro contemporâneo seu, Ítalo Svevo (1861 – 1929). Em seu obra
prima, A consciência de Zeno, Svevo
mostra as “motivações inconscientes da personagem central, Zeno Cosini, e
disseca toda a sua vida familiar e sexual. Expondo os processos interiores da
consciência, Svevo desnuda o ambiente convencional da burguesia italiana” (A consciência de Zeno, Posfácio, p.
382).
O que nos impressiona é a
possibilidade de que um autor informado como Proust tenha ficado à margem da
influência psicanalítica. É ainda Carpeaux que afirma ser Freud mais
“contemporâneo de Proust que de Joyce; a sua Interpretação dos sonhos é de 1900. Quando Proust, por volta de
1920, se tornou famoso, já se notou nele o pouco conhecimento da psicanálise.
Quer dizer: Proust é homem da época na qual a nova psicologia apenas estava ‘no
ar’; ele respirava essa atmosfera.” (Carpeaux, 2010: p.2411).
Enquanto Carpeaux identifica o
estilo proustiano como “simbolismo mágico”, outros autores preferem
classificá-lo como “impressionista”, numa correlação com o movimento
contemporâneo das artes plásticas. Esta última classificação é mais útil aos
propósitos deste trabalho que pretende encontrar as semelhanças do método
proustiano com alguns aspectos da teoria psicanalítica. A impressão, nos diz
Proust, “é para o escritor o mesmo que a experimentação para o sábio, com a
diferença de ser neste anterior e naquele posterior o trabalho da
inteligência.” (Proust, 1958: p. 130).
Impressões, transferência
Dentre as muitas digressões sobre
o seu método de criação, Proust nos fala, em O tempo redescoberto, sobre a necessidade da “análise em
profundidade das impressões, depois de recriadas pela memória” (Proust, 1958:
p.242). Ora, ele nos pergunta, “a recriação, pela memória, das impressões que
depois seria mister aprofundar, esclarecer, transformar em equivalentes
intelectuais, não seria uma das condições, quase a própria essência da obra de
arte...?” (Idem: p. 249).
Pensamento semelhante é expresso
por Freud já na Interpretação dos sonhos
(1900), quando afirma que o sistema Perceptivo, que “supre a nossa consciência
com toda a multiplicidade das qualidades sensoriais” não possui memória. É
necessário que essas qualidades sensoriais sejam transferidas para um sistema
de memória posterior ao sistema perceptivo. Essas lembranças gravadas em nossas mentes, mesmo as mais profundas,
prossegue Freud, “são, em si próprias, inconscientes”. Essas lembranças podem,
eventualmente, se tornar conscientes. Mas mesmo que permaneçam numa condição
inconsciente, podem produzir em nós todos os seus efeitos. Nossa constituição
psíquica está baseada nos traços de memória de nossas impressões. Além disso,
afirma Freud, “as impressões que causaram o maior efeito em nós, as de nossa
primeira infância, são precisamente aquelas que dificilmente se tornam
conscientes”. Mesmo que estas
lembranças, esses traços de memória resultado das impressões, venham “mais uma
vez” a se tornar conscientes, não exibirão sua qualidade sensória ou, então,
“apenas uma qualidade muito leve, em confronto com as percepções”. Mesmo que
Freud não o afirme aqui, essas qualidades sensórias somente podem ser
relembradas a partir da reprodução no processo transferencial das impressões
que delas se originaram.
Trabalho semelhante ao da
recriação transferencial pode ser encontrado em Proust. É o trabalho do
artista, em que ele busca sob a matéria, sob a experiência e sob as palavras,
algo diferente daquilo que o amor próprio, a paixão, a inteligência e o hábito
fazem a todo instante, quando estamos alheios a nós mesmos. Para o autor,
esta arte tão complicada é justamente a única viva. Só ela exprime
para os outros e a nós mesmos mostra a nossa própria vida, essa vida que não
pode ser ‘observada’, cujas aparências observáveis precisam ser traduzidas,
freqüentemente lidas às avessas, e a custo decifradas.” (Proust, 1958, p. 142).
É nesse campo transferencial
formado entre o artista e sua obra que o autor se submete à exigência
compulsiva que não nos deixa livres “diante da obra de arte, que não a fazemos
como queremos, mas que, sendo preexistente, compete-nos, porque é necessária e
oculta e porque o faríamos se se tratasse de uma lei da natureza, descobri-la.”
(P. 131).
É nesse campo transferencial que
vêm se atualizar todos os elementos depositados no interior do artista como
traços de percepção.
Pathos e tradução
Tanto Freud quanto Proust estão
empenhados em decifrar estes traços de percepção. Mas ainda não sabemos se tais
impressões pertencem já à ordem dos signos, ou se seu estatuto é meramente
psicológico, ainda do lado de fora do circuito pulsional. Para obtermos uma
resposta, permaneçamos ainda na Carta 52, onde a clínica mostra que os sintomas
das psiconeuroses, tais como ataques de vertigem e acessos de choro, têm como
alvo uma outra pessoa. Mas não uma
pessoa comum. É um outro pré-histórico,
inesquecível, uma pessoa “que nunca é igualada por nenhuma outra posterior”
(Freud, 1895 [1968] p. 239). E o exemplo dado logo em seguida nos indica esse outro: a mãe.
Se na sucessão de gerações é
necessário um perverso para gerar um histérico, não é o pai, mas a mãe que
Freud coloca no lugar desse outro pré-histórico, inesquecível, inigualável.
Inigualável, porque não vai ser nunca substituído; inesquecível, mas apenas em
um dos lugares do aparelho psíquico. E o seu inesquecimento, a sua eterna
permanência deve-se exatamente ao seu caráter sexual pré-histórico. Um sexual pré-sexual, pois pertence à ordem
pulsional do outro, implantando a
sexualidade pelo seu caráter mesmo de intraduzível. É anterior à palavra,
apresentando-se a um infans sem
capital significante para nomeá-lo.
Precisamos recorrer a George
Painter, o mais exaustivo biógrafo de Proust para encontrar esta mãe a quem a
eterna criança diz, velando-a no seu leito de morte: “não poderei viver sem
você”, ouvindo de volta a promessa impossível: “Não tenha medo, filhinho, sua
mãe não o abandonará.”
E será a freira que acompanhou os
últimos momentos de vida dessa mãe onipresente que dirá a Proust, num misto de
admiração e censura: “Para sua mãe você ainda era um menino de quatro anos.”
E foi para reconstruir esta
figura ambígua que Proust escreveu o seu romance-rio. Para que as suas águas
lentas e caudalosas limpassem sua alma desse pathos materno que nunca deixou de
lhe fazer uma exigência de tradução.
*
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. A tarefa
do tradutor. Cadernos do Mestrado, Rio de Janeiro, Programa de Pós
Graduação em Letras da UFRJ. 1994.
Die Aufgabe dês Übersetzers. Gesammelt Schifren, Frankfurt am
main: Suhrkamp, 1991.
CARPEUX, O. M. História
da literatura universal. Brasília; Senado federal, Conselho Editorial,
2010.
FREUD, S.
“Extracts from the Fliess papers” (1895). In: ____. The
Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud. London:
Hogarth Press, 1968.
__________ A
interpretação dos sonhos (1900). In _____ Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972.
PAINTER, G. D. Marcel
Proust. Rio de janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1990.
Proust, M. “O tempo redescoberto”. In Em busca do tempo perdido. Porto Alegre: Editora Globo, 1958.
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