domingo, 10 de fevereiro de 2008

A oficina no porão





Sérgio Castro Pinto


Desde há muito existe uma espécie de discriminação com o Regionalismo. E eu não tenho dúvidas: é mais uma estratégia de parte da crítica preconceituosa do sudeste para desqualificar um movimento que foi quem melhor respondeu aos anseios de se responder ao Brasil a partir do Brasil. Quem, depois de 1930, superou, em termos de qualidade, a ficção brasileira de 1930? Guimarães Rosa? Mas, o próprio Rosa se abeberou, e muito, do regionalismo. No entanto, para muitos, o Regionalismo acabou. Acabou coisa nenhuma! Nenhum assunto se esgota, a não ser que não se tenha engenho e arte para se inovar, através do estilo, avesso a clichês, jargões e chavões.. E chego ao que eu quero: Ronaldo Monte. É regionalista? É. Mas de um regionalismo da alma que, ao fim e ao cabo, termina em se transformar universal.Existe uma história de Jung segundo a qual o homem tem medo do porão. E realmente tem, pois, afinal de contas, o porão é subterrâneo, é a ausência do sol, é um mundo impregnado de sombras, de objetos imprestáveis, heteróclitos, desencontrados, faltos de tudo e de todos.Daí, ainda segundo Jung, o homem preferir o sótão em função do seu medo, pois o sótão é o consciente, o mundo claro, solar, onde tudo é bem visível, previsível e definido.E tanto é assim que o próprio Jung arremata: "A consciência se comporta então como um homem que, ouvindo um barulho suspeito no porão, se precipita para o sótão para constatar que aí não há ladrões e que, por conseqüência, o barulho era pura imaginação. Na realidade esse homem prudente não ousou aventurar-se ao porão".Em outras palavras, no sótão - reduto do consciente - o homem não só racionaliza os seus medos como cria mecanismos de defesa para melhor combater os seus fantasmas, fobias, neuroses e angústias, ao passo que no porão - reduto do inconsciente - a "racionalização é menos rápida e menos clara".Ronaldo Monte montou a sua oficina de escrever no porão. E, como bom e ousado psicanalista que é, escreveu a partir daí o excelente "Memória do fogo" (Editora Objetiva Ltda, Rio de Janeiro, 2006), cujos personagens, "Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste Brasileiro - conforme bem o diz Rosa Amanda Strausz -, perderam-se também do fio que conduz à vida. Em volta do fogo, partilham apenas da cachaça, água que queima". Os estranhíssimos viventes de Ronaldo são sombras que só ardem e "brilham" ao pé das fogueiras acesas. E embora de carne e osso, parecem fantasmas saídos de um livro-porão: este "Memória do fogo", um dos grandes lançamentos do ano de 2006.


Jornal O Norte, 5 de outubro de 2006.