segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Morta


Morta, sim. Dona Mocinha sabia que aquela ali não vivia mais. Uma alma veio avisar a ela no meio de um cochilo que deu. Esperou o menino acordar e contou: dessa vez tua mãe morreu de verdade, menino. Vai acordar teu pai.
Espero que dessa vez seja pra sempre. Não agüentava mais essa mulher, com aqueles achaques, com aqueles desmaios, com aquela invenção de morrer de vez em quando para acordar depois de muito tempo como se nada tivesse acontecido. E não contava nada a mim, que era seu marido. Vinha do outro mundo sem novidade, sem ter visto um parente, sem um palpite pro jogo do bicho. Uma inutilidade cada morte daquela. Acho bom mesmo que tenha morrido. Assim me caso de novo com uma mais nova que cuide melhor de mim. Porque homem não pode viver sem mulher. E sem mulher eu já vivia por muito tempo. Quando não estava morta, era uma morta-viva. Mal fazia um café, mal cozinhava um feijão, mal lavava uma roupa, mal me servia na cama. Bom que tenha morrido. E esse caixão aqui é muito caro. Pra que caixão bonito? se no fim vai pro fundo da terra, onde ninguém vai ver. E se morreu mesmo, pra que passar a noite em claro no velório? Antes do fim da tarde mesmo eu enterro. Amanhã tenho que cortar lenha na mata e começar a procurar outra costela pra me esquentar.
E assim foi feito. A tarde mal se entregava às primeiras sombras e lá vinham eles do cemitério. A noite mal sorvia os últimos sangues da tarde quando entravam em casa. O pai para o quarto, mudar de roupa e sair para procurar moça. O filho para a rede onde morrera a mãe, para sentir pela última vez o cheiro dela. Dona Mocinha para a cozinha fazer café, beber uma caneca e deixar o bule esquentando nas brasas do fogão. Pegou a sacola com as suas coisas e foi embora sem falar palavra.
Dona Mocinha não dormiu direito. Ficou revirando na cama até o primeiro galo. Até ouvir a voz assustada de Darque contar: Vó, aquela mulher não morreu não, vó. Ela foi enterrada viva. Ela mesma veio me dizer agora mesmo. Disse que está virada de banda no caixão e que a gente avisasse ao povo dela. Dona Mocinha enfiou um vestido por cima da combinação com que havia dormido, prendeu os cabelos com uma marrafa e disparou para a casa dos parentes da morta, da enterrada viva, para que mandassem abrir o caixão. Podia ser que ainda encontrassem a defunta com vida.
Ainda de longe da casa da morta, a mulher foi gritando para quem pudesse ouvir: valha-nos Deus, acudam por Nossa Senhora. Que gritaria é essa? falou com raiva o viúvo. Quando Dona Mocinha contou o que tinha ouvido da neta, o homem baixou a vista, ficou calado um tempo e depois saiu andando ligeiro. O menino, esfregando os olhos de sono, foi atrás. Não foi junto do pai, pois tinha medo daquela cara cerrada e daquele passo apressado, de calcanhar fincado no chão. Meio de longe, viu o pai parar na porta do coveiro e mandar o homem lacrar com tijolo e cimento a cova da mulher. Dessa vez ela vai ficar morta para sempre. Nunca mais ninguém tira ela de lá.
O menino sentiu um gelo tomar conta do seu corpo. Parecia que ele agora ia morrer como a mãe. Mas não quis. Não deixou que a morte tomasse conta do seu corpo. Disparou na carreira, mas não, por ali não, por ali ia passar no cemitério. Voltou e embalou em direção à mata, os pés batendo na bunda de tanto que corria. Não olhou pra trás, não queria ver o pai, não queria mais ver aquele fim de mundo onde a mãe morria. Não sabia, nem pensava para onde ia. Correu até não agüentar a falta de ar no peito. Foi diminuindo a carreira, passou a andar com pressa, depois caminhou devagar até que só podia mesmo arrastar os pés. Então ele caiu sentado na beira da mata e chorou um choro pra ninguém. Era pra si mesmo que chorava. E era um choro bom que o botou pra dormir.

Imagem obtida em www.portinari.org.br