domingo, 25 de janeiro de 2015

O OLHAR QUE ENSINA


"Mas Carmela não tinha a ciência das outras moças italianas daqui.  Pudera, as outras saíam todo santo dia, frequentavam as oficinas de costura, as mais humildes estavam nos cortumes,   na  fiação, que acontecia?  Se acostumavam com a vida.  Não tinha homem que não lhes falasse uma graça ou no mínimo olhasse para elas daquele jeito que ensinava as coisas.  Ficavam sabendo logo de tudo e até segredavam imoralidades umas pras outras, nos olhos."


Que ciência é essa que falta a Carmela?  Que coisas são essas que os olhos dos homens ensinam? Que mágica é essa, em  que um simples olhar faz as moças saberem de tudo? E onde estavam guardados esses segredos agora trocados pelos olhos das moças?

Vamos por partes.  Pelo menos três partes. 

Num primeiro momento se supõe que, igualmente a Carmela, as outras moças também se encontrem num estado de inocência e desamparo, carentes de uma ciência que as torne aptas a lidar com a mundanidade do trabalho e das ruas. 

Depois vem o momento de aprender a ciência, de se acostumar com a vida.  E as moças não aprendem as graças que os homens falam.  Elas aprendem coisas que os homens olham. Este olhar divide as águas. Antes dele, via-se inocência.  Depois dele, o que se vê?  Vê-se olhares autônomos de moças que trocam segredos.  Segredos "ïmorais".

No terceiro momento, as moças já estão acostumadas com a vida.  Se acostumar com a vida é aprender a conviver com esse olhar e com o que ele ensina.  Mais ainda: é fazer seu esse olhar e com ele trocar "sabedorias" com outros olhos.

Perguntemos agora  como se opera a mágica que faz com que os homens ensinem coisas às moças apenas com seus olhos.  Invoquemos Mesmer se quisermos supor que algum fluido sutil transporte a sabedoria dos olhos dos homens aos olhos das moças.  Mas os iluministas já nos ensinaram que tal fluido não existe.  Nada passa de um olho para o outro além do próprio olhar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Da mãe à mão.*

Poemapenas

Poema apenas registro
da poesia viva pelas ruas
pelas noites
pelos corpos.

Poema apenas retrato
em alma inteira
do meu corpo três-por-quatro.

Poema apenas clarão
na noite densa
turva
longa e sem mão.

Poema apenas.
Como um gato.

                                                                                              Ronaldo Monte

            O que me intriga neste poema é justamente este sem mão, pois escrevi  sem mãe, quando pela primeira vez escrevi o poema à mão. Na hora de passar a limpo, datilografar, escrevi sem mão. No primeiro livro em que o poema foi publicado, na hora da revisão, percebi que estava lá sem mão. Paciência, então. Resolvi não mais brigar com a teimosia do texto. E aí está ele, vencedor, exigindo uma mão no lugar de uma mãe.
            Há um tempo atrás, veio do divã a voz de um jovem que quer falar da mãe, mas que fala mão.  E quando lhe mostro o lapso, lembrando ao mesmo tempo do poema, a voz me diz que também troca a mãe pela mão quando escreve no computador.
            E quando uma amiga e colega, falando do Pequeno Hans, também faz a mesma troca, me convenço de que alguma coisa transita entre a mãe e a mão que deve ir além dos nossos lapsos de língua.
            Penso então na mão da mãe de Hans circulando em volta do pênis dele, circulando e ao  mesmo tempo apontando o lugar do desejo. É uma mão, uma representação parcial dessa mãe que está ali também apontando um objeto parcial do seu desejo. E agora eu me ponho no lugar de Hans nesse momento de uma certa espera desse toque, mas ao mesmo tempo o medo que esse toque se realize. Essa coisa que se chama angústia, mas que já traz, de uma certa forma, na própria Angst freudiana, a possibilidade de se traduzir em medo.
            E depois vem a repetição solitária do toque. O que se chama de masturbação, visto do lugar do menino, é uma forma de reviver na solidão do quarto esse momento de encontro com a mãe através da sua própria mão. É um gesto narcísico, mas nesse gozo narcísico/auto-erótico  já existe a possibilidade do outro, a representação desse outro, dessa mãe que vai e vem no movimento desta mão.
            Recorro agora a um texto de Serge Leclaire a respeito da letra, tal como Lacan aponta, mas concebendo-a como uma marca feita pelos dedos da mãe no corpo do infante. Várias letras, esparsamente inscritas, que só depois se juntariam numa possibilidade de sentido. Alguma coisa, então, é inscrita no corpo da criança por essa mão. Um manuscrito. Um manuscrito perdido, indecifrável, todo ele enigma, onde se inscreve o desejo.



* A partir de uma intervenção no Seminário do Instituto de Formação da Sociedade Psicanalítica da Paraíba.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A EXIGÊNCIA DA POESIA*



                                                               
                                                                      

            O discurso emitido na cura tem como suporte uma “exigência pulsional” (Triebanspruch) que o contamina com uma significação inconsciente. Um poema, por sua vez,  tem como suporte uma exigência poética que seria uma refração, no plano da obra, de um movimento criativo inconsciente que o leitor é convidado a identificar e acompanhar em todas as suas conseqüências. 

            A presença desta exigência pode ser melhor compreendida a partir de um exemplo de Jean Laplanche quando descreve o momento de gênese de um dos seus textos: “jogamos palavras sobre o papel, como por acaso, levados pela assonância, seduzidos pelo efeito produzido ou a produzir (...).  Aí estão inscritas, de agora em diante, não completamente sem história, nem sem intenção deliberada, mas num certo lugar intermediário, de onde exigem fazer sentido.  Mas, desde então, não se tem mais sossego. Já estão investidos, pela exigência do tema, pontos de estimulação de onde irradiam a inquietude, senão a angústia: verdadeiro demoniozinho cuja energia é preciso ligar antes de toda esperança de fazê-la fluir e disso obter um certo prazer.  Eis aí, mais que uma imagem, mais que um modelo: um desses microtraumatismos renovados que pontuam, que relançam nossa atividade criativa” .[1]

            A exigência poética, portanto, reflete a exigência pulsional de quem escreve.  Antes de se deslocarem para o texto, esses microtraumatismos, de que fala Laplanche, exigem uma busca de sentido a partir do inconsciente do autor.  Antes de uma exigência textual, existe uma exigência pulsional a investir certos pontos de estimulação situados num espaço de transição, significantes já, mais ainda enigmáticos, a irradiar inquietação, angústia.  E a exigir tradução. 

            Tradução se torna aqui o nosso conceito central, se tomarmos como referência o aparelho psíquico visto como um sistema de estruturas sucessivas no tempo, cada uma delas formada para traduzir, fornecer significação, a um excedente energético pulsional, tal como concebido por Freud na Carta 52/112 de sua correspondência a Fliess.

            Antes que este texto se torne enfadonho, convido para escrevê-lo comigo uma menina que começou a fazer poemas aos três anos de idade, ditando-os para sua mãe. São de Mykaela Mota Plotkin os poemas que trago para fruir com vocês.[2]


            Mykaela tem a palavra: