segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Massapê




O oleiro achou engraçada aquela figura que andava por cima da ribanceira do rio com uma das mãos estendida levando alguma coisa que não sabia ainda o que era. Parou a roda do torno com o pé, e ficou esperando. A figura veio vindo, veio vindo e se mostrou um menino já meio taludo, as calças curtas molhadas, com um montinho de massapê na mão estendida, como quem pede esmola.O menino ficou assim por um bom tempo, até que os seus olhos chegados da luz se acostumassem às sombras daquele lugar. Um teto de telhas escuras vai se abaixando até ficar quase da altura de um homem. No meio do calor do meio-dia, ali fazia uma friagem gostosa que vinha do monte de barro molhado descansando no chão. Montadas nas prateleiras, arrumadas nos cantos das paredes, muitas, muitas peças ainda cruas, curando, perdendo a água que ainda lhes resta, esperando a vez da sua fornada. Dependendo de onde vinha, o cheiro era diferente. Do monte de barro molhado vinha um cheiro parecido com o que ele sentiu lá na beira do rio. Do lado da parede onde descansavam as peças o cheiro era seco, lembrando alumínio. Juntando tudo, o cheiro do lugar lembrava o da cozinha da sua casa. Faltava o cheiro da comida. Mas o cheiro das cinzas por debaixo das panelas de barro em cima do fogão da sua casa estava ali. O menino só não sabia onde. E ficou meio perdido nesse cheiro, nessa quase catinga que morava no fundo da sua memória e se mudava para ali.
Tu qué o quê, Massapê?O senhor deixa eu cozinhar esse peito no seu forno? Que história de peito é essa, Massapé? Isso é somente um pedaço de barro. Não é não, o senhor vai ver. Botou a porção de barro na roda de cima do torno, sentou afobado no banco alto de madeira e tentou alcançar com o pé direito a roda de baixo. Mas a perna era curta, ficou remando no ar. O oleiro teve vontade de rir, mas não riu. Trabalhe só com as mãos, pode ser que saia alguma coisa que preste. E se afastou em direção à sua casa ali perto, como se procurasse não se sabe o quê.O menino olhou para a massa, agoniado. Não sabia o que poderia fazer com o peito de barro da sua mãe. Deixou então que suas mãos trabalhassem sozinhas, que batessem e amassassem o barro para que o ar saísse das bolhas, até que ele ficasse macio; que catassem na massa os grãos de areia, os restos de mato ou qualquer outra sujeira; que fossem apertando o barro entre os dedos e as palmas, beliscando a massa, arredondando com cuidado suas bordas, passando água por dentro e por fora para ficar lisinho, até que tinha entre as mãos uma tigela em forma de peito.


O oleiro voltou quando sentiu que o menino tinha acabado sua obra. O que é isso agora, perguntou. É o mesmo peito de minha mãe, só que agora eu vou poder mamar nele. Tudo que eu beber daqui em diante vai ser nessa tigela que eu mesmo fiz com o peito que eu trouxe de dentro da terra, de um lugar em que minha mãe sofria de agonia e eu saí de lá deixando ela morrer em paz. Aí ela me deu esse peito, para que eu sempre me lembre dela, para que eu carregue pro resto da vida essa parte do corpo que ela nunca me deu.E nele eu vou beber o leite que minha mãe me negou, que meu pai enterrou, que a terra engoliu, que o barro me devolveu. E foi com essas minhas mãos que eu botei de novo no mundo o peito que o mundo me levou.

Do romance Memória do fogo. Editora Objetiva, 2006.

Um comentário:

Fábia disse...

Oi, bonito de doer esse texto, eu sou ceramista, do Rio de Janeiro e estou pesquisando sobre memória, ou seja, isto tudo me cabe.
Obigada, abraço, Fábia Schnoor.