domingo, 6 de março de 2011

A tecelagem noturna

Novas considerações sobre o poeta dormindo
(Versão abreviada)

Ronaldo Monte*

O poeta João Cabral de Melo Neto tinha 21 anos quando apresentou ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941, as suas Considerações sobre o poeta dormindo . Ali, tentava falar das relações secretas, suspeitas, entre o sono e a poesia. O sono como fonte do poema. O poeta estava impressionado pela freqüência com que os críticos e poetas da época falavam e se preocupavam com o sonho. Dos estudos contemporâneos de psicologia às seções de jornais e revistas dedicados à “interpretação dos sonhos” as aplicações práticas que se faziam da produção onírica, sem nenhuma humildade, deixavam no completo esquecimento o mistério do sonho, a sua sombra.
O poeta não concordava com a dupla atitude comum aos homens do seu tempo, atitude “de quem come o sonho e de quem é comido pelo sonho”. João Cabral se refere ao sonho como uma obra de arte. Uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. O sonho é uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. Uma coisa que pode ser evocada, que pode ser explorada através da memória. “Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição”. O sonho é uma obra em si, totalmente cumprida. Entretanto, por mais que esta experiência fabulosa que se assiste possa ser evocada, narrada, dificilmente pode ser transmitida. Isto por conta de seu parentesco com a poesia. Mais ainda, em virtude da própria poesia que o sonho traz consigo.
Interessa agora ao poeta isolar o estado de sono do fenômeno do sonho para depois verificar o que o sono tem a ver com o poeta e a poesia. Pois, ao contrário do sonho, o sono é uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada. Uma aventura da qual se volta de mãos vazias. O sono é como um poço em que estamos ao mesmo tempo mergulhados e ausentes. E esta ausência nos emudece. Numa espécie de relação de causa e efeito, o sono não só provocaria o sonho, tendo-o como sua linguagem natural: o sono condiciona o sonho emprestando as dimensões e os ritmos de escafandristas às coisas que no sonho se desenrolam diante de nós. É o sono ainda que molda aquelas distâncias, que nos faz assistir certos acontecimentos contra os quais não podemos agir de nenhum modo, em que somos invariavelmente o preso, o condenado, o perseguido.
João Cabral agora se atreve a uma sutil fenomenologia, procurando estabelecer uma semelhança entre os elementos que compõem o clima do sonho, - um clima de tempestade, como o da poesia -, e a imagem da aparência do homem adormecido. Tanto os acontecimentos do sonho como o homem que dorme estariam profundamente marcados pela presença mesma do sono. Uma presença que não seria apenas a negatividade da vigília, mas marcada pela visão de um território desconhecido, um lugar onde somos estrangeiros e de onde “voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de mar alto, de ‘águas profundas’...”
Território estranho, este, o do sono; mais estranho ainda por se localizar dentro de quem dorme. A atitude do corpo de quem dorme, “nessas poses não raro trágicas (irônicas), nas palavras que se quer balbuciar”, na fisionomia mesma de quem dorme podemos adivinhar “os sinais de uma contemplação, e que é, sob outro aspecto, um sinal de vida”. Quem dorme, digo eu, contempla o chão do sono. Arrisco-me a dizer que este chão é a verdadeira pátria do estrangeiro, desse outro estranho a quem assistimos desde o nosso posto de contemplação. Daí a nostalgia do mar alto, das águas profundas que trazemos de volta ao acordar. Que estranho este que dorme em nós.

O jovem poeta pernambucano, marcado então pelo surrealismo, depara-se com a dificuldade, mesmo a impossibilidade “em se falar de um assunto em que é tão considerável a parte do vago.” Não tinha, confessa, a segura tranqüilidade de penetrar o mistério de olhos abertos, uma aventura de Paul Valery que lhe causava espanto. Mas, assim mesmo, ele vai tentar: “a poesia não está no sono”, afirma. O sono não é um reservatório de poesia no qual o poeta mergulhe em busca de material para o seu lirismo. Por outro lado, mesmo que “o próprio elemento, o sono em si, a própria palavra: sono (feita de sons que parece se prolongar no escuro; a voz do homem falando no escuro), sejam “coisas enormemente poéticas”, oferecendo-se como material para o poema, o sono age no poeta de uma forma bastante peculiar: “O sono predispõe à poesia”. Desta forma, ele deixa de ser um objeto para se transformar num exercício. E o jovem poeta se basear em sua experiência ainda recente de campeão juvenil de futebol pelo Santa Cruz do Recife para comparar este exercício a um “apronto” antes do jogo, em que o tempo do sono aguça no poeta “certas aptidões, certa vocação para o sobrenatural e o invisível...”
O sono, concluirá o poeta, não está presente na obra poética. O poeta não tem uma percepção objetiva do que acontece durante o sono. Não pode, portanto, representar a presença do sono em sua obra com uma imagem ou coisa formulada. O sono não inspira poesia; o poeta não se serve dele como de uma linguagem. O sono influencia o poema. “Fecunda-o com seu sopro noturno - o hálito da própria poesia em todas as épocas”.
Parece que o jovem João reconhece a principal influência do sono sobre o poeta quando favorece uma espécie de recolhimento, uma presença em si, ilustrada pela imagem do “poeta andando a longas pernadas dentro de sua noite”. Mesmo, porém, correndo o risco de cair numa generalização grosseira, de aparências, o poeta vai mais além e tenta indicar mais dois tipos de influência que o sono produz nas obras poéticas.
O primeiro tipo de influência se dá pelo que o poeta já chamou de predisposição à poesia. Essa mesma disposição pode se dar através de duas modalidades. Uma delas se realiza pela idéia de abstração do tempo, de fuga do tempo, que o sono reveste de um caráter efetivo. Esta seria, segundo Jorge de Lima, “a pedra de toque do verdadeiro poeta”. A outra modalidade de predisposição à poesia seria realizada pela idéia de morte que o poeta associa ao sono. E aqui o poeta ri da insistência do tema da morte na poesia moderna (o “medo de acordar piano”, de Newton Sucupira), da tranqüilidade com que se morre nos poemas, vendo nisto apenas um fenômeno próximo da “preocupação de fugir que tanto agita hoje em dia a humanidade acordada”. O homem que dorme está vivo, já está dito; e é vivo que contempla o sono. Este, o sono, é visto “como que um movimento para o eterno, uma incursão periódica no eterno, que restabelecerá no homem esse equilíbrio que no poeta há de ser, necessariamente, um equilíbrio contra o mundo, contra o tempo.”
O segundo tipo de influência sobre o poeta se dá quando o sono favorece a formação daquilo que Cocteau chama de “o verdadeiro realismo do poeta”: uma zona obscura proporcionada pelo adormecimento dos sentidos oficiais (‘um tempo obscuro’), onde se desenvolve um amálgama de sentimentos, visões, lembranças. Será dessa fusão que subirão mais tarde o que virá a ser os elementos do poema “que o poeta surpreenderá um dia sobre seu papel sem eu os reconheça.”

Um paradoxo

O que o poeta via quando olhava para dentro do sono? Que território desconhecido é esse, onde somos estrangeiros? De onde vem essa nostalgia de mar alto, de águas profundas? Quais seriam esses sinais de contem plação e ao mesmo tempo sinais de vida?
Doze anos mais tarde, algo mais prosaico vem nos ajudar a entender o enigma do poeta. Em 1953, um certo Eugene Aserinsk se impressionou com o fato de que os olhos se movem durante o sono e decidiu estudar a fisiologia desse fenômeno. Ressuscitou então um velho aparelho de eletroencefalograma abandonado nos porões da Universidade de Chicago, conectando-o a um dos olhos do seu filho de oito anos, enquanto este dormia. Aserinsk achou que o aparelho continuava quebrado, pois de vez em quando suas agulhas se descontrolavam traçando picos e depressões muito próximas às do cérebro em vigília. O que estava acontecendo no cérebro adormecido do filho de Aserinsk para que as agulhas do EEG se descontrolassem? Novas pesquisas permitiram estabelecer a conexão entre a fase do movimento rápido dos olhos no sono – fase REM – e o ato de sonhar. Dentre os pacientes que eram acordados durante essa fase, 80% a 95% relatavam sonhos vívidos, contra apenas 6,9% dos que eram acordados fora da fase REM.
Estava descoberto o sono paradoxal, ou sono rápido, que se caracteriza pelos ritmos rápidos, próximos aos da vigília ativa, mas acompanhados de uma queda do tônus muscular, de movimentos oculares rápidos, da presença de movimentos da face e das extremidades e de uma ereção do pênis (obviamente em quem o possui).
Alguns cientistas vêem no sono paradoxal o substrato biológico do sonho:
ele asseguraria a reparação da maquinaria neuronal, desempenharia um papel na maturação do sistema nervoso central, estabelecendo depois a manutenção dos comportamentos genéticos e fixação das informações adquiridas recentemente. Por outro lado, os sonhos que o agitam poderiam descarregar as pulsões e as lembranças inquietantes do indivíduo.
Alguns pesquisadores consideram a fase REM
como um estado de vigília modificado, em que a atenção se desvia das informações sensoriais para as recordações. E isto nos deve preparar para uma inversão do paradoxo. Paradoxal mesmo seria a vigília, considerada agora como “um estado de sonho modulado pelas restrições impostas por aportes sensoriais específicos”.

Isto era tudo o que qualquer poeta gostaria de ouvir: a vigília é um sonho. Dito pela neurologia, então, é quase um presente divino. Vamos ver o que pode nos acrescentar a isto um antigo neurologista de Viena.

A noite materna
Deixemos ao próprio Freud a tarefa de descrever a sua forma de ver, não apenas o poeta, mas a todos nós, humanos, dormindo:
Não se tem refletido bastante no fato de que o homem se despoja todas as noites dos envoltórios com que recobre sua pele, e ainda, talvez, dos complementos de seus órgãos corporais, se é que conseguiu compensar suas deficiências mediante um substituto: os óculos, a peruca, os dentes postiços, etc. Caberia acrescentar que, ao ir dormir, despe de modo análogo o seu psiquismo, renuncia à maioria de suas aquisições psíquicas. Assim, por ambos os lados, recria uma aproximação extraordinária àquela situação que foi o ponto de partida de seu desenvolvimento vital. O dormir é, somaticamente, uma reativação da permanência no seio materno e realiza as condições do estado de paz, de calor e de afastamento dos estímulos. E ainda muitos homens voltam a adotar, enquanto dormem, a posição fetal. O estado psíquico do homem que dorme se caracteriza por uma retirada quase total do mundo que o rodeia e pelo cessar de todo o interesse por ele.
O homem que dorme, portanto, tenta voltar para a noite primordial, silenciosa e calma, da qual foi definitivamente exilado. Todas as noites, o homem pode ainda matar as saudades desse território perdido. Mas vendo-o apenas de longe, olhando para o seu chão sem tocá-lo. É desse chão que ele vê brotar as imagens dos seus sonhos, recados enigmáticos da sua pátria originária para a qual sabe que nunca voltará.

Limiar simbólico
No final do capítulo seis da Interpretação de sonhos, ao terminar suas considerações sobre a elaboração secundária, Freud comenta um fenômeno que constituiria uma segunda contribuição do pensamento de vigília à formação de sonhos. Recorre, então, a um seu contemporâneo, Silberer, para afirmar que “as últimas parcelas do conteúdo manifesto, que são de imediato seguidas pelo despertar, representam nada mais nada menos que uma intenção de despertar ou processo de despertar”. Este momento do sonho é representado por certas imagens que sugerem o atravessar de um limiar, um “simbolismo de limiar”: sair de um quarto e entrar noutro, partir, voltar para casa, separar-se de alguém, mergulhar na água.
Os olhos do poeta que dorme contemplam com saudade esse território que por força terá que deixar. Daí, repetimos com João Cabral, a nostalgia do mar alto, das águas profundas que trazemos de volta ao acordar.
O poeta é o que demora perto do mistério. No umbral entre o sono e a vigília, o poeta é aquele que se debruça na margem do real (a terceira margem) e se recusa a sair dali de mãos vazias. O poema é o prêmio pela sua obstinação em contemplar o mistério. E muitas vezes o poema mesmo é o símbolo da passagem deste umbral. Uma passagem mágica, em que do fundo da noite do sonho as imagens abandonam suas formas transmudando-se em fios de palavras que se doam delicadamente e que o poeta, como uma aranha que tira de dentro de si mesmo a tênue matéria de sua teia, saberá, com esforço, tecer.
É o próprio Freud que compara o trabalho do sonho a uma fábrica de pensamentos semelhante à obra-prima de Goethe, o seu tecelão preferido:

“Um golpe de pé move mil fios
Enquanto vêm e vão as lançadeiras.
E mil fios correm invisíveis.
Em um só golpe, infinitas tramas.”

[- Goethe, Fausto, Parte I (Cena 4)].

E, se me permite o leitor, quero terminar este texto com um testemunho da minha própria experiência de poeta a quem raramente é permitido contemplar a sua própria tecelagem noturna:

De tua vida por um fio
a morte tece seus panos.

Dia-a-dia, zig-zag,
cresce no chão o novelo
que a sinistra tecelã
virá de noite roubar.

Pé-ante-pé, plec-plec
(a morte usa chinelos),
leva teus fios vividos
pra de noite, tlec-tlec,
alimentar seu tear

mesclando teu tempo inútil
com o enfado do teu trabalho
num só tecido inconsútil
do teu último agasalho.

*

* Poeta, escritor e psicanalista. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
1 - In Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, pp. 685 a 688.
2 - Cocude, M. L’homme biologique. Paris: PUF, 1993, p. 442.
3 - R. R. Llinás e D. Pare, “Of dreaming and wakefulness”, Neurocience, vol.44,n.3. 1991, pp. 521-35. Apud A. Alvarez, Noite. São Paulo: Companhia das Letras,1996 p. 103.
4 - Freud,S. Suplemento metapsicológico à teoria os sonhos. AE: XIV,221. ESB:253
5 - Cf. Freud, S. ESB, V: 539-40; AE, V:500-501.

2 comentários:

Maxwell F. Dantas disse...

Obrigado por postar este texto, Ronaldo. Assim vou poder degustar o que "apenas" ouvi na palestra da N. Consciência. Enteresso-me pela abordagem psicológica na Literatura;vou fuçar p ver se encontro teu e-mail por aqui, gostaria de trocar ideias literárias e psicológicas. Um abraço - Maxwell F. Dantas (Membro da ABES (Associação Boqueirãoense de Escritores).

Sulla Mino disse...

Adorei o Post. Sucesso.