terça-feira, 27 de abril de 2010

Escrever é me destilar

Entevista concedida ao jornalista Carlos Herculano Lopes, do jornal "Estado de Minas"


1) Por que só estrear no romance agora, com quase 60 anos?. Foi proposital, ou foi deixando as coisas irem acontecendo?

Não sou eu que estou estreando no romance quase aos sessenta. O romance é que só está sendo publicado agora. Entre 1990 e 91, eu estava em Campinas fazendo um doutorado quando comecei a ser atormentado pela idéia central do texto. Comprei um caderno e comecei a fazer anotações, construir um roteiro, moldar os personagens. Imagine você ter que estudar psicanálise, filosofia, alemão, com um bando de cachaceiros se mexendo na sua cabeça. A história não deu trégua e foi se fazendo. Estava pronta há uns cinco anos. Mas como eu não queria mais uma “edição do autor” e não aparecia oportunidade de furar o mercado nacional, o texto foi sendo revisado, comentado por gente de confiança. Acho que esse tempo de espera fez bem ao livro.

2)Qual é a história que você conta em Memória do fogo? Como foram construídos seus personagens?

O argumento central é simples: um grupo de cachaceiros, totalmente vividos pela embriaguez, se juntam num determinado lugar para entrar em combustão espontânea. O que eu fiz foi acompanhar a trajetória de cada um desses homens desde a meninice até o momento do encontro. Estabeleci que cada um deles teria uma profissão ou uma experiência marcante ligada ao fogo. Mas logo no primeiro capítulo apareceu uma mulher com uma filha no colo. O nome da menina é Darque, Joana Darque, e vai cruzar com cada um destes homens ao longo da narrativa. No final das contas, a história que eu conto é a das pessoas que são lançadas no mundo em completo desamparo e não conseguem construir suas vidas. São devorados pelo fogo do álcool que toma conta de suas memórias. Antes, lhes empresta uma memória construída em torno de quase cinzas. No final, o fogo é como um deus benevolente que consome seus filhos a partir do dentro de seus corpos. Como uma graça por haverem se embebido da água ardente. Podem pensar que fui cruel com meus personagens. Mas eu fui misericordioso.

3)Com este livro você passa a integrar a coleção Fora do Eixo, da editora Objetiva. Como é fazer literatura em Alagoas? Até que ponto viver fora do "eixo" pode influenciar na vida de um escritor?

Primeiro, uma correção. Nasci em Maceió, mas fui com onze anos para o Recife e vim para a Paraíba aos trinta anos, ensinar na UFPB. Eu faço literatura na Paraíba. Não vejo muita diferença em fazer literatura aqui ou em qualquer lugar do País. A diferença está na oportunidade de publicação. Mesmo assim, sei que nem todo escritor do “eixo” está dentro do “eixo”. O “eixo” é o mercado. Já apareceram algumas vozes classificando o meu texto como regionalista. Acho que esta questão está superada. De uma forma ou de outra, todos somos regionalistas. O escritor que conta as tramas de um quarteirão da avenida Paulista ou de uma favela do complexo do Alemão está, a seu modo, sendo regionalista. No final das contas, falamos todos de uma região virtual que nos habita e nos constrói. Ela é composta dos lugares em que vivemos, das pessoas que roçamos, dos livros que lemos, dos quadros que vimos, dos filmes ou novelas que vemos. Esta região nos acompanha e exige que falemos dela.

4) Literatura e psicanálise caminham juntas? Até onde você deixa o psicanalista interferir nos seus textos literários?

Comecei a escrever antes de me tornar psicanalista. Cometi poemas ainda menino. Mais tarde fui redator de propaganda, no Recife. Afiei meu texto a soldo. Aos poucos fui tentando o texto curto, uma crônica aqui, um conto ali, alguns texto inclassificáveis que teimavam em continuar poemas. Foi a psicanálise que cafetinou minha escritura. Meus textos acadêmicos são palatáveis, o que não quer dizer que sejam de fácil digestão. É natural que, ao saber que sou psicanalista, as pessoas procurem e achem no meu texto referências ao Édipo, à castração, etc. Mas até onde eu saiba, não procuro deliberadamente tratar de temas psicanalíticos. Mas como nada do que é humano é estranho à psicanálise, é natural que os personagens vivam certos temas visados pelo saber psicanalítico. Só não posso negar que minha forma específica de escuta, marcada por uma neutralidade benevolente, influencia o modo como permito que os personagens se expressem, como consigo sintonizar com seus sentimentos, numa espécie de identificação que aprendi a usar no consultório.

5)Quais são os escritores que você tem como referência? Se sente diretamente influenciado
por algum deles?

Tenho lacunas enormes na minha formação literária. Minha família não tinha tradição de leitura e tive que me virar sozinho. Mas lá em casa tinha uma coleção do Tesouro da Juventude que foi a minha salvação. Comecei com José Lins do Rego de quem tomei emprestado o imaginário rural. Pois sou um nordestino urbano do litoral, um caranguejo, como disse Gilberto Freire. Depois vieram Machado de Assis, Graciliano, Guimarães Rosa. Mário de Andrade quase todo e um pouco do Oswald. Tem os poetas, também os básicos. Bandeira, Vinicius, Drumond, Murilo Mendes. Enfim, o serviço militar obrigatório, e a passagem também obrigatória por Fernando Pessoa. Tem as mulheres também. Clarisse e Adélia. Li e leio o que me cai nas mãos. Thomas Mann, Günter Grass, Antonio Callado. Dos pernambucanos, além do texto de Gilberto Freire, tive muita influência de Hermilo Borba Filho. Passei um tempo querendo ser o João Ubaldo. Agora, o texto que mais me espantou foi o de Saramago. Li o “Memorial do convento” numa edição da Difel, muito antes dele se tornar famoso por aqui. Mais recentemente, ando encantado pela narrativa de Ítalo Calvino. Gostaria de ter a delicadeza dele. Mas não gostaria de ser tomado como epígono de ninguém.


6)Para o que você acha que serve a literatura? O que o ato de escrever significa para você?

Mesmo correndo o risco do lugar comum, acho que a literatura serve para nos tornar mais humanos. Lendo ou escrevendo, estamos exercitando certas possibilidades de ser que muitas vezes nos são inacessíveis no cotidiano. Sempre digo que sou bem melhor por escrito. Somos todos muito destabanados no calor da refrega. Escrevendo, somos mais cuidadosos com as palavras, temos tempo para medir sua densidade. Escrever, para mim, é me destilar.

Um comentário:

Retábulo disse...

Ronaldo, tivemos a liberdade de postar sem autorização sua, o seu texto em nosso blog. Muito obrigada pela contribuíção. Grande abraço. Ficamos emocionados!