terça-feira, 11 de agosto de 2009

Fora dos eixos



Ronaldo Monte, autor do romance "Memória do fogo", é psicanalista. Daí o dom, louco, de um de seus personagens, de ver as pessoas "por dentro". Daí o trabalho seguro, do romancista, com os complexos de Édipo e Eletra, que vemos em belos personagens como Massapê e Joana Darque. Daí, talvez, o prazer que nos proporciona sua escrita, no que nos passa sua visão sombria de um mundo "out of joint", como diz Hamlet, num texto luminoso. Freud era um grande escritor. Alguns livros dele, como "Psicopatologia da vida cotidiana", são excelentes realizações literárias. Ronaldo Monte, romancista, também herda do Dr. Ronaldo Monte o conhecimento da alma humana e a precisão no uso das palavras. "Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim", diz - fascinantemente - uma de suas criaturas. "Se soubesse a palavra eriçado, estaria eriçado", o ficcionista diz, soberbamente, de outro vivente seu.

Somente alguém que convive com a Sombra de cada um de nós poderia dizer, com pleno conhecimento de causa, que "é cada vez mais feio o que vejo dentro das pessoas". Mas Ronaldo Monte faz, do relato do que vê, sua obra de arte, buscando, talvez, a sublimação do que vive em seu dia a dia, antes mesmo da aristotélica catarse de seus leitores. E o elemento essencial do instrumento que escolheu para isso, a palavra, ele a usa com brilho, criando um ambiente primitivo e místico, exacerbado pelo uso estratégico de orações do livro de São Cipriano, o que termina por dar ao seu trabalho um tom, frequentemente, de realismo mágico. "Tua mãe morreu de novo, menino. Vai chamar teu pai."

"Memória do fogo", apesar de suas poucas cento e vinte e três páginas, não tem pressa alguma de nos levar ao seu final. Avança lento, com estórias soltas que, aos poucos, vão se entrelaçando, até que tenhamos as sagas de seis homens e de uma mulher que se reúnem misteriosamente ao redor das chamas, cada um reconhecendo no outros os pares de seu sofrimento. O fogo, evidentemente, é o elemento que funde essas narrativas, como quando a donzela pobre - Joana Darque (nome da santa que morre na fogueira)- sonha com um homem que lhe dê um fogão a gás, ou quando entramos - no capítulo "Massapê" - na oficina do oleiro, onde uma leva de cerâmicas é trabalhada no forno.

Um livro estranho. Com material de primeira para discípulos e dissidentesde Freud. A Objetiva marcou um tento com sua série "Fora dos eixos". Marcou outro ao levar ao país mais esse rebento da nova literatura nordestina e, mais precisamente, paraibana.

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