Organizada pela escritora Maria Valéria Rezende, a série literária digital tem o objetivo de dar visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos regionais.
Mostra a História que grandes ideias e parcerias nasceram de conversas informais ao redor de uma mesa. Os compositores Tom Jobim e Vinícius de Moraes, por exemplo, conheceram-se numa mesa do bar Villarino, no Centro do Rio. Foi também numa mesa de restaurante que o arquiteto Oscar Niemeyer fez, nas costas frágeis de um guardanapo, o esboço do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, uma das mais celebradas obras de sua carreira. No começo do ano, estavam sentadas à mesa de um café, em São Paulo, a escritora Maria Valéria Rezende e a diretora executiva da Revista Pessoa, Mirna Queiroz, quando veio à baila o problema da difusão da nova literatura no Brasil; a dificuldade para se distribuir e divulgar, com lealdade e alcance devido, a rica produção literária escrita e publicada em todas as regiões do país.
“A distribuição de livros físicos tem sido uma via de mão única e monopolizada por empresas sediadas no centro-sul. Há anos que eu, paulista aparaibanada, levanto sempre essa questão, não porque tenha pena dos autores, mas porque me parece que é a comunidade leitora do país que perde a oportunidade de enriquecer-se com diferentes pontos de vista, estilos, linguagens”, observa Maria Valéria Rezende.
Dessa incômoda constatação, ficou a proposta de se criar uma maneira de dar mais visibilidade a escritores com talento reconhecido em apenas alguns nichos. Porém, como superar a barreira geográfica? A resposta acaba de ser dada com a coleção Latitudes, inteiramente lançada no formato digital pelo selo Mombak, em parceria com a e-galáxia. A primeira leva conta com cinco títulos, já disponíveis para compra nas principais lojas virtuais do ramo.
“Um dos grandes motivos por trás da pouca divulgação desses escritores é a dificuldade de distribuição num país de dimensão continental como o nosso. O digital elimina essa barreira. Eu vejo essa plataforma com muito otimismo. Facilita o acesso à produção, realmente é mais barato, e encurta o caminho até o leitor. Mesmo quem não tem e-reader pode baixar um aplicativo no computador e ler os e-books. E isso é o que realmente importa: oferecer boa literatura ao alcance do leitor, onde quer que ele esteja”, aponta Mirna Queiroz, que faz o papel de editora.
A organização coube a Maria Valéria Rezende, cuja garimpagem inicial partiu de sua própria biblioteca, dos livros de pequenas editoras regionais que vai coletando no curso de suas viagens. Nessa seleção, figuram os títulos A paixão insone, de Ronaldo Monte; Aqui as noites são mais longas, de Geraldo Maciel; O beijo de Deus, de Dôra Limeira; Palavras que devoram lágrimas, de Roberto Menezes; e Já não há golfinho no Tejo, de Joana Belarmino. De acordo com a organizadora, a escolha final resultou da vontade de apresentar, de cara, uma variedade que incluísse romances, contos e minicontos, de mulheres e de homens de faixas etárias distintas, sendo três obras inteiramente inéditas e duas que haviam tido apenas edições locais já esgotadas.
“Há excelente literatura que só é bem conhecida na região em que o escritor vive e publica, de modo que o que se considera, divulga e analisa como sendo a literatura brasileira não é mais do que uma pequena parte dela, favorecida, com notáveis exceções, pela localização geográfica dos autores”, salienta.
O escritor alagoano Ronaldo Monte, cujo livro explora a solidão e a busca pela ternura na conturbada relação com a violência urbana, atesta a necessidade de se desmistificar a noção de grandes centros literários. Segundo ele, o que existe, de fato, são complexos mercadológicos focados na publicação e na divulgação de alguns grupos de autores ligados a determinadas editoras sediadas, estas sim, em grandes centros comerciais.
“Um centro literário, a meu ver, é um lugar que concentra uma produção literária significativa. E neste sentido, a noção de centro está sendo substituída por uma nova tópica em rede com seus pontos distribuídos por todo um campo territorial, virtualmente ligados entre si”, considera o autor.
Natural da Paraíba, o professor Roberto Menezes, que traz, emPalavras que devoram lágrimas, vencedor do Prêmio José Lins do Rego, o fluxo de consciência de uma mulher embalado por camadas de lembranças e desgostos acumulados durante sete anos de um casamento acabado, defende o estado como um centro literário, por concentrar, no cenário atual, excelentes autores que vivem um grande momento na prosa e na poesia.
“A definição de grande centro literário é um pouco distorcida, muitos confundem com regiões onde se situam grandes editoras e distribuidores. O formato digital serve para esses autores quebrarem as fronteiras e levar sua literatura a lugares aos quais, muitas vezes, só editoras e distribuidoras dos maiores centros econômicos podem levar o livro físico”, atenta Menezes.
Com entusiasmo, a escritora Joana Belarmino, cujos contos da antologia Já não há golfinho no Tejo primam por um verniz poético, percebe os livros digitais como uma das invenções mais democráticas do nosso tempo.
“Pensava no que seria do meu livro, encapsulado embits e bits, trafegando pela cibervia. Não sei se fui a primeira a comprar. Fui lá e fiz clique, e zaz! Feito pequenas libélulas, transportei para o smartphone os livros de toda a coleção. Abri meu e era como se os contos tivessem ganhado um sabor novo”, conta.
Para 2015, a intenção é lançar mais cinco títulos. Porém, de acordo com Mirna Queiroz, um trabalho sem pressa e cuidadoso, tratando o selo como uma butique literária, que aposta na qualidade e na bibliodiversidade.
“Se a coleção responder aos nossos sonhos, daremos várias voltas pelo país. Já temos muitas obras de outras regiões engatilhadas, e passaremos outra vez, mais adiante, pela Paraíba”, complementa Maria Valéria Rezende.
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