sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A (boa) literatura brasileira contemporânea


Há mais ou menos 10 segundos (são 22:59 no momento em que escrevo), tive um lampejo: tenho criticado bastante a literatura contemporânea brasileira, mas não tenho apontado - ao menos não aqui, diretamente - nomes que valem a pena ser lidos e conhecidos.
Faço isso indireramente, resenhando bons livros por aí. E a grande maioria das resenhas está publicada no Digestivo Cultural.
Mas como o teor dos últimos posts está um tanto birrento, resolvi indicar alguns nomes para quem tiver algum interesse em ler literatura brasileira contemporânea de qualidade. Indicarei o nome do autor e um livro dele, ok?
Charles Kiefer - “Valsa para Bruno Stein” (romance)Menalton Braff - “A coleira no pescoço” (contos)Mayrant Gallo - “O inédito de Kafka” (contos)Flávio Moreira da Costa - “Livramento” (poesias)Viviane Mosé - “Desato” (poesias)Paulo Bentancur - “A solidão do diabo” (contos)Sidney Garambone - “Eu, Deus” (romance)Diter Stein - “Brilho de sangue” (contos)Sérgio Rodrigues - “As sementes de Flowerville” (romance)Edward Pimenta - “O homem que não gostava de beijos” (contos)Ronaldo Monte - “Memória do fogo” (romance)
Foi o que pude lembrar aqui, de improviso. Todos autores e livros acima de qualquer suspeita. Alguns mais densos que outros, outros mais divertidos que alguns, mas todos de excelente qualidade.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Rosa Amanda Strausz: a prosa de Ronaldo Monte


Cinco homens e uma mulher se reúnem em torno da fogueira. O mesmo gesto repetido há milênios pela humanidade. Ao fogo entregamos nossas indagações e perplexidades. Das chamas partilhadas saíram nossas crenças e mitos, nossa história e nosso conhecimento. Para os seis que ali se reúnem, no entanto, não existe grandiosidade. Nem esperança. São jovens, mas não conseguiram atravessar a ponte que separa a infância da vida adulta. Precocemente fracassados, perdidos em algum ponto do Nordeste brasileiro, perderam-se também do fio que conduz a vida. Em volta do fogo, partilham apenas a cachaça, a água que queima.
É para a miséria humana que se dirige a atenção de Ronaldo Monte em sue romance de estréia. Para as dores que atravessam o tempo e permanecem inexplicáveis. Para o sofrimento exaustivamente investigado por filósofos, poetas, cientistas, e jamais compreendido.
A prosa de Ronaldo Monte mistura a psicanálise e o catimbó, a filosofia e a tradição oral, o erudito e o popular, numa surpreendente teia de relações. Na Memória do Fogo, tudo arde – a começar pelo olhar do autor, que constrói amorosamente suas personagens, como se todas fizessem parte de uma mesma irmandade. E é nela que nos envolvemos ao iniciar a leitura. Como que hipnotizados pela luminosidade de uma fogueira primitiva, como que também embriagados pelo poder da palavra do romancista.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Sérgio Rodrigues: Ronaldo Monte: ‘Memória do fogo’


“Memória do fogo” (Objetiva, 128 páginas, R$ 27,90), de Ronaldo Monte, é o terceiro título da coleção Fora dos Eixos, que já lançou “O vôo da guará vermelha”, de Maria Valéria Rezende, e “Voláteis”, de Paulo Scott. A coleção pretende, nas palavras escolhidas pela editora, “buscar a qualidade literária fora do eixo Rio/São Paulo”. O ponto de partida é lá um tanto questionável: as idéias de centro e periferia andam embaralhadas pela internet, e a velha convicção de que existe um mundão de talento inexplorado fora do “eixo” anda cada vez mais parecida com um mito. Mesmo assim o resultado da coleção tem sido mais que animador. “Memória do fogo” não é um livro fácil. Regionalista e intimista ao mesmo tempo, tem uma prosa de alta densidade poética dentro da qual a narrativa avança com lentidão de sonho. Vale a pena embarcar na viagem porque Ronaldo Monte, nascido em 1947, psicanalista alagoano radicado em João Pessoa, tem voz própria e um admirável domínio da linguagem. Qualidades incomuns dentro ou fora dos eixos.
Leia mais em Todo Prosa 24/06/06 12:01 AM

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Estação



Ali, na estação, a vida parecia uma mágica. A plataforma amanhecia vazia de gente e de coisas. O chefe da estação, com sua farda de mescla azul e o boné bem assentado na cabeça, abria o armazém, dava ordens para o encarregado e ia sentar perto da janelinha de onde vendia os bilhetes de papelão, parecidos com pedras de dominó. Ida, só uma cor. Ida e volta, duas cores, metade verde, metade na cor natural do cartão. O toc-toc curioso do telégrafo, com aquela fita de papel cheia de furos. A cabeça meio inclinada do telegrafista, seu olhar distante como se visse a outra pessoa que mandava a mensagem. Aquele toc-toc era a voz das letras que se somavam em palavras. Aquilo sim, era um dos grandes mistérios da vida. As palavras vinham pelo fio, cortadas em pedaços que um homem juntava de novo na penumbra do escritório da estação.Aos poucos, iam chegando os vendedores. Tabuleiros com laranjas descascadas, cocadas brancas e queimadas, pirulitos enfiados nos buraquinhos da tábua, difíceis de desgrudar do papel. Água fria nas quartinhas, pão doce, pão sovado, bolo de goma. Encostados na parede ou sentados no chão, ficavam por ali, meio calados, na espera. Lá pelas oito e meia iam chegando os viajantes. Famílias inteiras em roupa de passeio, caixeiros em ternos amassados, soldados da polícia, casais de olhares tristes, velhotes engomados, senhoras empoadas. Com o passar dos minutos um certo nervosismo vai aos poucos tomando conta da plataforma. As conversas se apressam e as vozes se alteiam, os casais andam pra lá e pra cá, os velhotes tossem, as senhoras suspiram, os caixeiros passam lenços amassados nos rostos suados, soldados olham para os lados em espreita. Os vendedores se impacientam. Os em pé trocam as pernas que se apóiam na parede. Os sentados arrastam os calcanhares no chão, subindo e descendo os joelhos. É o trem que vem vindo. Ninguém ainda vê, nem se ouve o apito. Mas é a hora que chega. Antes do trem vem o tempo que antecipa os adeuses, os cuidados, os recados, os mandares de lembranças. Antes do trem vem a angústia de quem vai ou fica. Lá vem, alguém grita, e estoura o alvoroço. Os vendedores entram em prontidão e começam a gritar os seus refrões muito antes do trem chegar na estação. Ninguém sabe muito bem o que fazer, mas todo mundo quer fazer alguma coisa. Gestos descabidos, palavras desconexas, olhares fugidios, toda uma série de atos sem sentido, que só vão querer dizer alguma coisa quando o trem partir as correntes que amarram os que vão e os que ficam.(...) Maletas e pacotes não se despedem, não juram amor, nem mandam recados. As caixas e sacos, arrumados no vagão de cargas, deixam menos saudades ainda. Daqui a pouco, quando o trem virar a primeira curva, o silêncio varrerá os sentimentos da plataforma. O toc-toc do telégrafo será a única presença do mistério das palavras.

Do romance Memória do fogo. Editora Objetiva, 2006
Ilustração recolhida em
http://www.sergiosakoll.com.br/

Massapê




O oleiro achou engraçada aquela figura que andava por cima da ribanceira do rio com uma das mãos estendida levando alguma coisa que não sabia ainda o que era. Parou a roda do torno com o pé, e ficou esperando. A figura veio vindo, veio vindo e se mostrou um menino já meio taludo, as calças curtas molhadas, com um montinho de massapê na mão estendida, como quem pede esmola.O menino ficou assim por um bom tempo, até que os seus olhos chegados da luz se acostumassem às sombras daquele lugar. Um teto de telhas escuras vai se abaixando até ficar quase da altura de um homem. No meio do calor do meio-dia, ali fazia uma friagem gostosa que vinha do monte de barro molhado descansando no chão. Montadas nas prateleiras, arrumadas nos cantos das paredes, muitas, muitas peças ainda cruas, curando, perdendo a água que ainda lhes resta, esperando a vez da sua fornada. Dependendo de onde vinha, o cheiro era diferente. Do monte de barro molhado vinha um cheiro parecido com o que ele sentiu lá na beira do rio. Do lado da parede onde descansavam as peças o cheiro era seco, lembrando alumínio. Juntando tudo, o cheiro do lugar lembrava o da cozinha da sua casa. Faltava o cheiro da comida. Mas o cheiro das cinzas por debaixo das panelas de barro em cima do fogão da sua casa estava ali. O menino só não sabia onde. E ficou meio perdido nesse cheiro, nessa quase catinga que morava no fundo da sua memória e se mudava para ali.
Tu qué o quê, Massapê?O senhor deixa eu cozinhar esse peito no seu forno? Que história de peito é essa, Massapé? Isso é somente um pedaço de barro. Não é não, o senhor vai ver. Botou a porção de barro na roda de cima do torno, sentou afobado no banco alto de madeira e tentou alcançar com o pé direito a roda de baixo. Mas a perna era curta, ficou remando no ar. O oleiro teve vontade de rir, mas não riu. Trabalhe só com as mãos, pode ser que saia alguma coisa que preste. E se afastou em direção à sua casa ali perto, como se procurasse não se sabe o quê.O menino olhou para a massa, agoniado. Não sabia o que poderia fazer com o peito de barro da sua mãe. Deixou então que suas mãos trabalhassem sozinhas, que batessem e amassassem o barro para que o ar saísse das bolhas, até que ele ficasse macio; que catassem na massa os grãos de areia, os restos de mato ou qualquer outra sujeira; que fossem apertando o barro entre os dedos e as palmas, beliscando a massa, arredondando com cuidado suas bordas, passando água por dentro e por fora para ficar lisinho, até que tinha entre as mãos uma tigela em forma de peito.


O oleiro voltou quando sentiu que o menino tinha acabado sua obra. O que é isso agora, perguntou. É o mesmo peito de minha mãe, só que agora eu vou poder mamar nele. Tudo que eu beber daqui em diante vai ser nessa tigela que eu mesmo fiz com o peito que eu trouxe de dentro da terra, de um lugar em que minha mãe sofria de agonia e eu saí de lá deixando ela morrer em paz. Aí ela me deu esse peito, para que eu sempre me lembre dela, para que eu carregue pro resto da vida essa parte do corpo que ela nunca me deu.E nele eu vou beber o leite que minha mãe me negou, que meu pai enterrou, que a terra engoliu, que o barro me devolveu. E foi com essas minhas mãos que eu botei de novo no mundo o peito que o mundo me levou.

Do romance Memória do fogo. Editora Objetiva, 2006.

Virar moça




Uma vez, uma mulher do riacho perguntou meio debochada: tu já virou moça, menina? Não sabia o que era virar moça. Sabia naquela hora que não podia ser uma coisa boa, pois todas as mulheres pararam de areiar as panelas para rir de minha cara encabulada.Virar moça, virar moça... Minha mãe devia saber o que era, pois me contava histórias de homem que vira lobisomem, de mulher de padre que vira mula-sem-cabeça, de mulher corcunda que vira serpente quando fica velha. Quando cheguei em casa, fui direto pra cozinha e disse: mãe, uma moça do riacho perguntou se eu já tinha virado moça. Eu já virei? Ainda não, respondeu ela. Quando virar, você mesma vai saber. Agora vai cuidar de tuas coisas que eu tenho mais o que fazer.Virar moça... O nome da minha vó é Dona Mocinha. Mas não acho que a mulher do riacho perguntou quando é que eu vou ficar velha. Ela perguntou se eu já tinha virado moça. Moça, que eu saiba, é uma mulher nova que ainda não chega a ser mulher. As moças que eu conheço têm mais corpo do que eu, têm as pernas mais grossas, a cintura mais fina e têm os peitos grandes. Os meus ainda não nasceram. A não ser que eu chame de peito esses carocinhos que estão aparecendo. Um dia eu vinha do riacho com o vestido molhado colado no corpo e um homem safado que bebia cachaça no balcão da venda gritou: olha as pitombinhas dela. Daqui a pouco ela vira mulher. Aí é que eu fiquei embaraçada. A mulher do riacho diz que vou virar moça. O homem da venda diz que vou virar mulher. Alguma coisa, na certa, estou virando. Pois este corpo de menina parece que não está dando mais em mim.Ai esse corpo que não se aquieta. Esse formigamento nas pernas, essa agonia nas juntas, essa vontade de chorar não sei por que. Ai essa vontade de gritar, de cantar, de ficar muda pelos cantos. Ai esse calor que não passa, esse suor leitoso nessa cama que ficou pequena pra meu corpo. Ai essa coisa molhada e peguenta entre minhas pernas. Meu Deus, eu me cortei? Alguma coisa se rasgou dentro de mim? Que sangue é esse que sai do meio de minhas coxas? Mãe, me acuda, me acuda minha mãe, que eu estou sangrando.A mãe chegou, me entregou uma toalhinha e disse sem olhar na minha cara: bota isso entre as pernas. Não tome banho frio, não faça trabalho pesado, não fique muito no sol, não passe nem perto de um pé de limão. Agora você virou mulher, já pode ter filho.Então, o homem da venda ganhou. Minha mãe disse que eu virei mulher. Mas eu queria ter virado moça. Queria ter peito grande, duro. Queria ter coxa grossa, cintura fina. Queria ir no cinema, namorar, dançar bolero. Mulher, eu não queria ser não. Mulher é feia, tem peito mole de tanto dar de mamar aos filhos.Não tem cintura de tanto que pariu. Mulher não sai da cozinha, não se penteia, não dá passeio. Mulher é uma coisa triste. Eu não. Eu quero ser moça.
Do romance Memória do Fogo. Editora Objetiva, 2006.